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Coluna Garanhuns: Memórias e Inspirações


OLHARES SOBRE A CIDADE

Ígor Cardoso*


Faz uns sete anos que ouvi, pela primeira vez, a música “Beija-flor”, da banda garanhuense “Muendas”. Havia-os descoberto pouco antes, no portal de música independente “Palco MP3”, e ainda teria a grata oportunidade de assistir a uma apresentação deles no “teatro-locomotiva” de nosso Centro Cultural.

Foi amor à primeira audição:

“A flor que nasceu na serra
Foi beija-flor que beijou; (…)
Hoje só resta a lembrança
Do tempo bom que passou...”

Desde então, sempre que regresso à terrinha – ao divisá-la, logo após Jupi e Neves, altaneira e majestosa no alto da mítica serra dos Garanhuns –, solto o “play” no som do carro. E deixo o romance cantado pelos artistas conterrâneos transfigurar-se em minha própria história de amor com o torrão natal...

É curioso porque, à medida que a bela paisagem “beijada pelos colibris” inspira meus olhos “Ad Altiora”, às alturas, vão-me passando pela mente lembranças – algumas, próprias; outras, imagens como a da fundadora, a mameluca Simoa Gomes, a cavalgar seus arredios corcéis por entre a mataria agreste, semivirgem, recém-conquistada aos negros do Magano; ou como a do genial cientista Ruber van der Linden, flagrado em campo – terno branco, mãos à cintura –, a implantar, diligentemente, a “nova Garanhuns” que projetara, a “Heliópolis” do sonho por ele partilhado com o visionário prefeito Euclides Dourado.

                                                     Foto: Ígor Cardoso

Memórias, como diria a amiga Luzilá Gonçalves, de tempos que não vivi, mas dos quais tenho saudades...

Garanhuns é bem isso, para mim e para tantos de seus filhos: memórias e inspirações. Por tal razão, ao receber o delicioso convite para assinar uma coluna sobre a “petite patrie” para o “Falando Francamente”, o ótimo blog dessa entusiástica filha-adotiva da “Terra de Simoa” que é Amannda Oliveira, não vacilamos muito na escolha do título.

Em nossa percepção, parece existir, a impregnar o imaginário dos  garanhuenses, uma intrigante ambivalência entre o novo e o velho, entre o progresso e a tradição, entre as percepções, enfim, de “Cidade das Flores” e de “Cidade do Já Teve”.

Flávio Lyra, nosso vigoroso memorialista, já chamava atenção, em excelente artigo, para o fato de que, entre nós, se, de um lado, ocorre uma difundida atitude de exaltação às belezas da cidade, traduzida em um orgulho, em essência, contemplativo e retórico; por outro, verifica-se uma prática, concomitante e paradoxalmente, devastadora, flagrantemente atentatória contra a paisagem e o patrimônio locais.

É provável que o discurso adotado em tal ou qual momento – seja de valorização, seja de inconformismo – recaia em perspectivas arraigadas, automatizadas em nosso senso comum.

A esse respeito, a escritora Neide Tavares possui uma crônica, intitulada “Cidade Serrana”, pela qual sou apaixonado, veiculada em suas “Lembranças de Garanhuns e outras mais”. Nela, a dileta amiga, rara poetisa da prosa, narra a descoberta da menina em relação à cidade onde nascera e se criara, porém para a qual nunca despertara.

Tudo começou com um poema, lido em um almanaque, a ressaltar-lhe os méritos de “serrana”; ato contínuo, o diálogo transformador com uma visitante:

“Somente notei que (minha terra era diferente das outras cidades do Nordeste) quando uma jovem veio passar uns dias aqui e não tinha agasalho para sair à noite, mesmo em pleno verão. Indaguei por quê. Ela me afirmou que, nas outras cidades, ninguém usava abrigo contra o frio, porque o clima era quente. Depois disso, gostei ainda mais de Garanhuns. Ela era especial. A gente se habitua à terra onde nasceu, e as coisas se tornam tão comuns que não se olham essas pequenas diferenças que a tornam singular”.

A terra onde nasci sempre me tocou profundamente, e, embora nela tenha habitado por muito menos tempo do que gostaria, sempre me considerei sortudo de poder fazer jus a um vínculo tão especial. Entendo, por outro lado, que aos que nela sempre viveram seja difícil manter o olhar inspirado para além das contingências do dia-a-dia.

São os riscos de habituar a percepção – tudo se transforma em reles evidência: o frio e a neblina; a água mineral abundante; os dois parques ancestrais e as diversas áreas verdes; os monumentos e os recantos pitorescos; os tradicionais colégios e as faculdades; o cinema e o circuito gastronômico; a qualidade de vida nas calçadas e nos passeios, sem o tormento dos congestionamentos e das buzinas ensurdecedoras – cidade ainda humanizada, apesar da recente “ditadura do asfalto”, e resistente à encapsularização.

Foi justamente para não sucumbir a esses riscos que sempre respondi “não” quando me perguntavam se, algum dia, eu desejaria morar em Paris. Paris não é cidade para a gente se acostumar; para passar batido pelo Arco e pela Eiffel, como se eles fossem reles evidências na paisagem...

Já por Garanhuns, e só para poder tê-la, de novo, como cenário de minha existência, eu me disporia a viver com todos os necessários alertas ligados.

A terra onde nasci sempre me tocou profundamente, mas foi o poema de sua singularidade que direcionou minha curiosidade e minhas melhores atenções para ela, levando-me a querer romper o “véu” da evidência, a descobrir o porquê de ela ser assim, tão ímpar. Nem tudo são versos na “Cidade Poesia”, nem a isso me proponho: a erguer-lhe um altar divinizado. Mas, sim, a tentar levantar voo por sobre o automatismo e a polarização, contextualizando-lhe historicamente as facetas, a fim de que nos seja possível pavimentar-lhe um presente e um futuro de maior equilíbrio.

Há menos de um mês, vejam só, celebrávamos a data cívica municipal, o “Dia de Garanhuns”, e um meio de comunicação regional, ao aludir à ocasião, investiu mais da metade da matéria em reproduzir as queixas dos moradores em relação à cidade. Pensei: “Rapaz, esse derrotismo impregnado deve ser coisa contagiosa, e esta cidade precisa voltar a se lembrar do que faz, antes de ser logo invocada pelo que deixa de fazer...”

Ora, o professor Michel Zaidan tem razão ao afirmar que é preciso, urgentemente, trabalhar a autoestima dos cidadãos, sem perder de vista o horizonte crítico. Assim, nestas “Memórias e Inspirações”, procuraremos prestar nosso modesto concurso a tão nobre causa, valendo-nos da História como poderosa aliada.

Permitamo-nos, neste espaço, olhar a cidade despidos dos tradicionais preconceitos, como uma criança que acabasse de descobri-la...

Ígor Cardoso é escritor da Academia de Letras e pesquisador do Instituto Histórico, Geográfico e Cultural de Garanhuns.

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