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Coluna Garanhuns: Memórias e Inspirações: CIDADE MULHER



CIDADE MULHER

Ígor Cardoso

Há alguns anos, ao conversar com um amigo de minha faixa etária sobre a História de Garanhuns e explicar-lhe quem havia sido Simoa Gomes – designação de avenida, de escola e até de estabelecimentos comerciais na terrinha –, quase caí para trás quando ele afirmou que sempre pensara haver tal nome sido registrado por engano cidade afora, tratando-se, em verdade, de alusão a “algum Simão importante”.
Não, eu lhe disse: nossa terra foi fundada por uma mulher – sim, por uma mulher, e não por uma mulher qualquer! Até no nome ela era especial e ímpar: quem, afinal, já ouviu falar de alguma outra Simoa na História do Brasil? Em seguida, ao descrever-lhe os memoráveis feitos da matriarca em pleno Setecentos – Simoa nasceu em 1693 e faleceu em 1763 –, foi esse meu amigo quem quase caiu para trás, deixando, inclusive, transparecer algum ceticismo em relação ao que ouvia.
Infelizmente, não era a juventude a razão do comentário dele. Alfredo Vieira, ao referir-se à fundadora em seu ótimo “Garanhuns do meu Tempo”, já a tinha por “Simões Gomes”, restando investigar se por desconhecimento ou por descuido; e mesmo o caruaruense Nelson Barbalho, inteirado de sua existência e de sua trajetória, tomava-a por incapaz de haver obrado tudo quanto a ela se atribui, por se tratar de “uma mulher jovem, analfabeta e muito inexperiente”, imputando seu protagonismo a bairrismo ou exagero de garanhuense.
Sobre Simoa, já tive oportunidade de publicar o artigo “Simoa Gomes de Azevedo: a Mulher e o Mito”, veiculado no nº. 10 da Revista de História Municipal do CEHM, em 2014; bem como de conferenciar em três palestras realizadas em 2015, duas por ocasião do “Dia de Garanhuns” (10 de março), na Câmara de Vereadores e no Instituto Histórico, Geográfico e Cultural, e outra para o decano Clube Lítero-Recreativo Brasil-Estados Unidos, tradicional agremiação garanhuense integrada só por mulheres.
Neta do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, encarregado de aniquilar o longevo Quilombo dos Palmares, e nascida da união de um paulista, filho daquele bandeirante, com uma índia guará-anum, cuja história “não registrou o nome”; já nos é dado encontrar a uma jovem Simoa de 18 anos a alforriar, em seu Sítio do Garcia, embrião da povoação dos Garanhuns – propriedade cuja sede se situava na parte oeste da atual Av. Santo Antônio, nas imediações do Espaço Cultural Luís Jardim, e onde a fundadora residia com o esposo Manoel e com os filhos Valério e Bertoleza – à cativa Domingas, entre outras. Isso em 1711 – quase dois séculos antes do ato da Princesa Isabel!
Casal abastadíssimo, pouco depois, Manoel e Simoa ergueram a primitiva capela de Santo Antônio, pavimentando o caminho para a consolidação do arruado em torno do rústico templo – bem como do julgado, o núcleo judiciário que então já ali funcionava. Se as posses materiais do par abundavam, a saúde de Manoel, porém, era frágil, e, aos precoces trinta e poucos anos, Simoa se viu surpreendida pela viuvez.
Incrivelmente, é doravante, agindo com altivez e desenvoltura em meio aos varões da elite local, que sua biografia se agiganta ainda mais. Encontramo-la despachando com as autoridades da Vila do Penedo; presidindo a necessária reconstrução da capelinha; e, com vistas a elevar o curato de Santo Antônio à condição de freguesia (ou paróquia), destacando do Garcia o Sítio da Cruz, que ofereceria, em 1756, à Irmandade das Almas – vale lembrar que, sob o regime do Padroado, doar à Igreja significava doar ao Estado –, ato, este último, que a imortalizaria, porquanto tal doação possibilitaria o desenvolvimento da cidade não em terras privadas, senão públicas.
Em seus oitenta anos de vida, tudo fez Simoa para que, nos Garanhuns, surgisse e medrasse uma povoação, funcionasse um núcleo judiciário e um eclesiástico, e, quiçá, viesse a ser criada uma vila, a precursora municipalidade da região. E, durante meio século, a “estadista do Ararobá” – como era conhecido o atual Agreste pernambucano –, essa incrível mulher setecentista, caso raríssimo de protagonismo feminino nos tempos coloniais e no interior da colônia, agiu sozinha, liderando os contemporâneos do sexo oposto.
Ora, assim como Duarte Coelho emprestou aos pernambucanos de sua “Nova Lusitânia” o arrojo e a ousadia que lhe eram próprios; assim como Maurício de Nassau, ao forjar sua cosmopolita “Maurícia”, imprimiu ao Recife definitivos ares e foros de Capital; e assim como o visionário Dom Malan converteu Petrolina na “Terra dos Impossíveis”, impregnando seu “pensar grande” nos ribeirinhos sertanejos; também a mameluca de sangue paulista e cariri transmitiu à sua terra seu espírito de “mulher pioneira, síntese da brasilidade”.
Certa vez, em bate-papo com uma simpática cabeleireira natural de Blumenau-SC, comentávamos justamente sobre lugares de origem, razões de mudança e saudades, quando ela, ao ouvir a palavra “Garanhuns”, vibrou de entusiasmo: “Nossa, você é de lá!? Estive lá recentemente e voltei encantada! Que lugar lindo, limpo, um charme... E o friozinho!? Recordei muito as nossas cidades do Sul! Nunca tinha visto nada igual por aqui, pelo Nordeste! Como pode sua cidade ser assim!?”
Àquele tempo, por mais que eu já soubesse que a graciosidade da “Cidade das Flores” era obra de muitas mãos e de muitos séculos, não me contive: “É porque ela foi fundada por uma mulher! O bom gosto e a sensibilidade femininos nos acompanham desde o comecinho...”
É pena que muitos garanhuenses desconheçam sua História, ignorem eu nem digo a biografia e seus detalhes, porém a própria existência de nossa fundadora – ainda que o nome dela reverbere até na voz de Luiz Gonzaga: “Garanhuns, Terra de Simoa; Garanhuns, que terrinha boa; Garanhuns, onde o Nordeste garoa...” É pena que alguns garanhuenses cheguem ao absurdo de vandalizar o busto da mulher, da inigualável mulher, que plantou a semente a qual, hoje, todos nós colhemos – nós, que nascemos nestas suas terras do Garcia, da Cruz, dos Garanhuns.
Por felicidade, nem tudo são lágrimas de garoa na ancestral e poética “Terra de Simoa”. Ruber van der Linden, nosso genial cientista, preocupou-se em homenageá-la com uma das principais avenidas do bairro que projetou (Heliópolis) sob encomenda do prefeito Euclides Dourado; e, décadas mais tarde, a generosidade de algumas das “herdeiras espirituais” de Simoa, as integrantes do Clube Lítero-Recreativo ao qual me referi, legou à cidade o busto que adorna a referida via, contando, para tanto, com o irrestrito apoio do então secretário de Cultura do município, Givaldo Calado de Freitas.
A propósito de “herdeiras espirituais”, Alberto da Silva Rêgo, no capítulo dedicado “À Mulher Garanhuense” de seu clássico “Os Aldeões de Garanhuns”, já ratificava a afirmação do professor João de Deus de Oliveira Dias de que “Simoa Gomes de Azevedo teve outras seguidoras que, não montadas em corcéis, mas vencendo o receio da crítica e os preconceitos então vigentes, ingressaram e obtiveram êxito nos mais diversos campos do saber”; procurando, à continuação, pintar um vívido panorama de algumas delas.
Em artigo que escrevi para o Dia Internacional da Mulher de 2013, intitulado “Feliz Garanhuns das Mulheres”, amplamente divulgado na internet, procurei chamar atenção para a particularidade da existência de seguidoras que, mais que honrar a atitude pioneira de Simoa, destacaram-se, estadual e nacionalmente, na luta pela própria emancipação feminina. Notáveis “herdeiras” como a jornalista e deputada Cristina Tavares Correia, responsável por boa parte das disposições constitucionais de 1988 que procuraram assegurar a igualdade entre os gêneros; e a professora e escritora Luzilá Gonçalves Ferreira, especialista em Literatura Feminina e autora de “best sellers” protagonizados por grandes mulheres de nossa História.
Aliás, e a título de curiosidade, meu primeiro contato com Luzilá não foi outro senão o de procurar instá-la a redigir, o quanto antes, um romance dedicado a Simoa. Era preciso devolvê-la ao tempo presente, e pessoa mais qualificada a fazê-lo não haveria que a acatada conterrânea. Sob a promessa de que eu a auxiliaria no que me fosse possível, nossa imortal da Academia Pernambucana de Letras aceitou o desafio. Assim, Simoa e Garanhuns ganharam um romance, que já está pronto; e eu ganhei uma dileta amiga.
Fundada por uma mulher, a “Pólis Simoensis” tem alma feminina. Espraia-se por charmosas colinas verdejantes, ornando-se de flores as mais coloridas e exuberantes, sempre perfumada com o cheirinho gostoso do eucalipto. Ela própria é uma flor serrana, uma donzela elegante e vaidosa, que, altaneira, veste-se, anualmente, com uma echarpe de neblina todas as manhãs de inverno. Cidade que adora embelezar-se, mas que também é culta, inteligente e militante, afeita a presidir iniciativas que valorizam a cultura e o intelecto, caso de seu famoso Festival de Inverno.
Apenas em um lugar assim, em uma “Cidade Mulher”, poderiam ter raiado uma Simoa, uma Cristina e uma Luzilá, mas também uma Narcisa Coelho, uma Cecília Rodrigues, uma Luzinette Laporte, entre tantas outras filhas naturais e adotivas. Mulheres ilustres e anônimas, motivo de orgulho para qualquer chão natal, e sobre as quais tornaremos a conversar em oportunidades futuras. Por ora, vou deixando minha reverência a todas as valorosas conterrâneas na pessoa de Simoa Gomes de Azevedo, a primeira garanhuense.

*Ígor Cardoso é escritor da Academia de Letras e pesquisador do Instituto Histórico, Geográfico e Cultural de Garanhuns

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